quarta-feira, 6 de março de 2013

Por que os teólogos não entenderam Galileu ?

Essa é a opinião do físico italiano Nicola Cabibbo, em artigo para o jornal Corriere della Sera, 23-05-2009. Cabibbo é conhecido por trabalhos sobre a interação nuclear fraca. Foi também presidente do Instituto Nacional de Física Nuclear (INFN) da Itália, de 1983 a 1992, e, desde 1993, presidente da Pontifícia Academia das Ciências. Atualmente é professor do Departamento de Física da Università degli Studi di Roma La Sapienza. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A seguir o texto;

Quando, em 1610, se mudou de Pádua para Firenze, junto com a corte dos Médici, Galileu insistiu para receber o título de Filósofo e Matemático primário do Grão-Duque. Não só Matemático, como Kepler junto com a corte imperial de Praga, mas também e sobretudo Filósofo. Esse pedido é fundamental para se entender a vastidão do projeto galileiano: uma ciência que não se contenta em explorar e descrever fenômenos, mas que aspira a uma compreensão totalizante da natureza. Um programa como esse se torna necessariamente uma filosofia. Em sua base, a famosa passagem de "Il saggiatore" [O ensaísta], em que Galileu afirma que o grande livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos. É necessário partir da matemática para se entender o mundo.
Os desenvolvimentos da ciência e das técnicas, representadas por cientistas como Nicolau Copérnico ou William Gilbert, ou pelos grandes cientistas-artistas-engenheiros do Renascimento italiano, de Leonardo a Guidobaldo del Monte, não podiam ser enquadrados na filosofia então dominante, a de Aristóteles. Em Aristóteles, a natureza era descrita em termos de "forma" e de "substância", conceitos que não permitem ir além de uma discussão puramente qualitativa dos fenômenos naturais. A passagem do qualitativo para o quantitativo requeria uma filosofia diferente, a de Pitágoras, segundo o qual tudo é número.
Ainda hoje o inegável sucesso da descrição matemática da natureza é fonte de maravilha. Quando, em 1960, Eugene Wigner, um dos pais da mecânica quântica, escreveu um ensaio, que já se tornou um clássico, sobre a "Eficácia irracional da matemática nas ciências naturais", teve que concluir que "we do not know why our theories work so well", não sabemos por que a matemática funciona tão bem.
A nova filosofia da natureza colidia, portanto, com a filosofia dominante, mas também com o pensamento teológico que, por meio da escolástica, havia encontrado, justamente na filosofia de Aristóteles, os seus fundamentos racionais.
Ser contra Aristóteles no século XVI era extremamente arriscado. Como sabemos, o choque levou à colocação das obras de Copérnico no Índex em 1616 e ao processo contra Galileu em 1633. O desenvolvimento dos conhecimentos científicos que se transformava necessariamente em filosofia da natureza tinha colocado uma forte suspeita de heresia sobre Galileu e os seus seguidores.
Faltou à Igreja, no início do século XVI, uma personalidade de calibre intelectual de um Tomás de Aquino, que soubesse avaliar corretamente o impacto filosófico da nova ciência, começando pelas descobertas astronômicas de Galileu de 1609. O fundamento do método de Galileu é uma imagem do funcionamento da natureza na qual se enquadram os fenômenos particulares. Galileu é um atomista convicto, vê toda a matéria como composta por partículas que se movem no vazio, e essa imagem do mundo guia a sua pesquisa. O atomismo serve de pano de fundo para os estudos sobre flutuação, é central em "O ensaísta" e inspira a discussão sobre a resistência dos materiais nos "Discursos e demonstrações matemáticas em torno de duas novas ciências" de 1637. Não apenas o pitagorismo, mas também o atomismo se choca com Aristóteles.
Como Pietro Redondi demonstrou, no seu "Galileu herético" (Companhia das Letras, 1991), o atomismo de Galileu teve um papel não indiferente nos bastidores do processo de 1633. Galileu estava convencido de que toda a matéria, seja na terra como nos corpos celestes, obedecia às mesmas leis. E essa convicção, confirmada pelas suas descobertas astronômicas, o havia levado ao sistema copernicano, segundo o qual a terra gira em torno do Sol e ao redor de si mesma.
Um elemento essencial do método de Galileu consiste em simplificar ao máximo os fenômenos que se deseja estudar, limpando-os o máximo possível de efeitos secundários que obscureçam o resultado buscado.
Para estudar a lei que regula o movimento dos corpos é preciso concentrar-se em objetos pesados, menos influenciados pela resistência do ar. E depois convém diminuir a velocidade da queda, estudando a rotação sobre um plano inclinado. O último passo consiste em estudar o movimento de um pêndulo, que elimina o atrito.
Enfrentando o mesmo problema a partir de mais pontos de vista, em condições experimentais diferentes – o movimento de um projétil, a rotação sobre um plano inclinado, o pêndulo – Galileu chega a isolar o coração do fenômeno, a determinar as leis do movimento. Os "Discursos e demonstrações matemáticas em torno de duas novas ciências" contêm alguns belíssimos exemplos de experimentos mentais. Trata-se de um instrumento totalmente original, que talvez é a máxima contribuição de Galileu ao desenvolvimento das ciências: imaginar um experimento, mesmo que não facilmente realizável, cujo resultado porém é evidente. Um exemplo entre muitos: se um objeto se move para baixo, o seu movimento é acelerado; se ele se move para cima, o movimento é retardado. Portanto, Galileu pode afirmar que, em um plano horizontal, o objeto não estaria nem acelerado nem retardado, mas se moveria à velocidade constante. Tão evidente é essa conclusão que não é necessário executar o experimento. Mesmo porque o experimento não daria certo, porque não é possível eliminar totalmente o atrito, mas a conclusão permanece válida.
Experimentos mentais desse tipo estão na base da descoberta da gravitação universal de Newton – a Lua cai como uma maça? – ou da teoria da gravidade de Einstein – o que acontece em um elevador em queda livre?
A fertilidade do trabalho de Galileu para o desenvolvimento das ciências é impressionante e se desenvolve já nas décadas posteriores à sua morte. Nas pesquisas de Galileu, encontramos as sementes da descoberta do barômetro de Torricelli ou da lei da gravitação universal de Newton.
Em torno a 1675, Giovanni Cassini e o dinamarquês Ole Rømer, que estudavam um método proposto por Galileu para a determinação da longitude, observaram irregularidades no período de rotação dos satélites de Júpiter. Obtiveram assim a primeira medida da velocidade da luz, respondendo a uma pergunta precisa colocada por Galileu nos "Discursos".
É conhecendo a velocidade da luz que James Bradley, estudando a aberração estelar, um pequeno deslocamento da posição aparente das estrelas, pôde encontrar, em 1729, uma demonstração do movimento da terra ao redor do Sol, demonstração que Galileu havia inutilmente procurado 100 anos antes.

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