Essa é a opinião do físico italiano Nicola Cabibbo, em artigo para o jornal Corriere della Sera, 23-05-2009. Cabibbo é conhecido por trabalhos sobre a interação nuclear fraca. Foi também presidente do Instituto Nacional de Física Nuclear (INFN) da Itália, de 1983 a 1992, e, desde 1993, presidente da Pontifícia Academia das Ciências. Atualmente é professor do Departamento de Física da Università degli Studi di Roma La Sapienza. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A seguir o texto;
Quando, em 1610, se mudou de Pádua para Firenze, junto com a corte dos Médici, Galileu insistiu para receber o título de Filósofo e Matemático primário do Grão-Duque. Não só Matemático, como Kepler junto com a corte imperial de Praga,
mas também e sobretudo Filósofo. Esse pedido é fundamental para se
entender a vastidão do projeto galileiano: uma ciência que não se
contenta em explorar e descrever fenômenos, mas que aspira a uma
compreensão totalizante da natureza. Um programa como esse se torna
necessariamente uma filosofia. Em sua base, a famosa passagem de "Il saggiatore"
[O ensaísta], em que Galileu afirma que o grande livro da natureza está
escrito em caracteres matemáticos. É necessário partir da matemática
para se entender o mundo.
Os desenvolvimentos da ciência e das técnicas, representadas por cientistas como Nicolau Copérnico ou William Gilbert, ou pelos grandes cientistas-artistas-engenheiros do Renascimento italiano, de Leonardo a Guidobaldo del Monte, não podiam ser enquadrados na filosofia então dominante, a de Aristóteles.
Em Aristóteles, a natureza era descrita em termos de "forma" e de
"substância", conceitos que não permitem ir além de uma discussão
puramente qualitativa dos fenômenos naturais. A passagem do qualitativo
para o quantitativo requeria uma filosofia diferente, a de Pitágoras, segundo o qual tudo é número.
Ainda hoje o inegável sucesso da descrição matemática da natureza é fonte de maravilha. Quando, em 1960, Eugene Wigner, um dos pais da mecânica quântica, escreveu um ensaio, que já se tornou um clássico, sobre a "Eficácia irracional da matemática nas ciências naturais", teve que concluir que "we do not know why our theories work so well", não sabemos por que a matemática funciona tão bem.
A nova filosofia da natureza colidia, portanto, com a filosofia
dominante, mas também com o pensamento teológico que, por meio da
escolástica, havia encontrado, justamente na filosofia de Aristóteles,
os seus fundamentos racionais.
Ser contra Aristóteles no século XVI era extremamente arriscado. Como
sabemos, o choque levou à colocação das obras de Copérnico no Índex em
1616 e ao processo contra Galileu em 1633. O desenvolvimento dos
conhecimentos científicos que se transformava necessariamente em
filosofia da natureza tinha colocado uma forte suspeita de heresia sobre
Galileu e os seus seguidores.
Faltou à Igreja, no início do século XVI, uma personalidade de calibre intelectual de um Tomás de Aquino,
que soubesse avaliar corretamente o impacto filosófico da nova ciência,
começando pelas descobertas astronômicas de Galileu de 1609. O
fundamento do método de Galileu é uma imagem do funcionamento da
natureza na qual se enquadram os fenômenos particulares. Galileu é um
atomista convicto, vê toda a matéria como composta por partículas que se
movem no vazio, e essa imagem do mundo guia a sua pesquisa. O atomismo
serve de pano de fundo para os estudos sobre flutuação, é central em "O ensaísta" e inspira a discussão sobre a resistência dos materiais nos "Discursos e demonstrações matemáticas em torno de duas novas ciências" de 1637. Não apenas o pitagorismo, mas também o atomismo se choca com Aristóteles.
Como Pietro Redondi demonstrou, no seu "Galileu herético" (Companhia
das Letras, 1991), o atomismo de Galileu teve um papel não indiferente
nos bastidores do processo de 1633. Galileu estava convencido de que
toda a matéria, seja na terra como nos corpos celestes, obedecia às
mesmas leis. E essa convicção, confirmada pelas suas descobertas
astronômicas, o havia levado ao sistema copernicano, segundo o qual a
terra gira em torno do Sol e ao redor de si mesma.
Um elemento essencial do método de Galileu consiste em simplificar ao
máximo os fenômenos que se deseja estudar, limpando-os o máximo
possível de efeitos secundários que obscureçam o resultado buscado.
Para estudar a lei que regula o movimento dos corpos é preciso
concentrar-se em objetos pesados, menos influenciados pela resistência
do ar. E depois convém diminuir a velocidade da queda, estudando a
rotação sobre um plano inclinado. O último passo consiste em estudar o
movimento de um pêndulo, que elimina o atrito.
Enfrentando o mesmo problema a partir de mais pontos de vista, em
condições experimentais diferentes – o movimento de um projétil, a
rotação sobre um plano inclinado, o pêndulo – Galileu chega a isolar o
coração do fenômeno, a determinar as leis do movimento. Os "Discursos e demonstrações matemáticas em torno de duas novas ciências" contêm
alguns belíssimos exemplos de experimentos mentais. Trata-se de um
instrumento totalmente original, que talvez é a máxima contribuição de
Galileu ao desenvolvimento das ciências: imaginar um experimento, mesmo
que não facilmente realizável, cujo resultado porém é evidente. Um
exemplo entre muitos: se um objeto se move para baixo, o seu movimento é
acelerado; se ele se move para cima, o movimento é retardado. Portanto,
Galileu pode afirmar que, em um plano horizontal, o objeto não estaria
nem acelerado nem retardado, mas se moveria à velocidade constante. Tão
evidente é essa conclusão que não é necessário executar o experimento.
Mesmo porque o experimento não daria certo, porque não é possível
eliminar totalmente o atrito, mas a conclusão permanece válida.
Experimentos mentais desse tipo estão na base da descoberta da gravitação universal de Newton – a Lua cai como uma maça? – ou da teoria da gravidade de Einstein – o que acontece em um elevador em queda livre?
A fertilidade do trabalho de Galileu para o desenvolvimento das
ciências é impressionante e se desenvolve já nas décadas posteriores à
sua morte. Nas pesquisas de Galileu, encontramos as sementes da
descoberta do barômetro de Torricelli ou da lei da gravitação universal de Newton.
Em torno a 1675, Giovanni Cassini e o dinamarquês Ole Rømer,
que estudavam um método proposto por Galileu para a determinação da
longitude, observaram irregularidades no período de rotação dos
satélites de Júpiter. Obtiveram assim a primeira medida da velocidade da luz, respondendo a uma pergunta precisa colocada por Galileu nos "Discursos".
É conhecendo a velocidade da luz que James Bradley,
estudando a aberração estelar, um pequeno deslocamento da posição
aparente das estrelas, pôde encontrar, em 1729, uma demonstração do
movimento da terra ao redor do Sol, demonstração que Galileu havia
inutilmente procurado 100 anos antes.
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